quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Meu livro, minha vida

Há algumas semanas lembro-me de ter relatado aqui mesmo, nessas folhas, um assalto que acabei sofrendo, na minha própria casa, enquanto lia os jornais no banheiro. Os assaltantes levaram alguns trocos que tinha e o livro “O Livro do Desassossego”. Que bom que nada sofri os assaltantes até que foram cordiais, dialogaram, mas mesmo com essas conversas e vocábulos informais fiquei com medo.

O Natal se aproximando, o Ano Novo quase nascendo fui até a caixa de correspondências para ver se alguém me mandava ao menos um cartão (não vale via e-mail) e lá estava um pacote embrulhado, destinado a minha pessoa, feito presente. Achei carinhoso, um gesto bonito, típico de duas pessoas que cultivam uma amizade duradoura. Tratei logo de pegar as contas que se acumulavam para só assim correr para dentro de casa e abrir o presente.

Tive medo de abri-lo, pois não sabia de onde vinha, talvez para manter o suspense e dar ao embrulho uma cor natalina. Vou abrir, pensei, tenho várias pessoas que me conhecessem e dificilmente colhi inimigos ao longo desses anos. Bomba, não. Isso é coisa de terroristas e aqui é difícil encontrarmos um, só se ainda encontra-se incubado. Dei os primeiros passos, retirei a fita que formava um laço e mais um embrulho apareceu. Fiquei achando que se tratava de brincadeira, mas a pessoa queria manter o suspense, deixar-me afoito, ansioso para abraçar de vez o meu presente. E não ficaria chateado se fosse algo simples, nem mesmo as chaves de um carro (mas para que um carro se não dirijo). Fiquei a pensar por aqueles segundos que me separavam do final daquela situação, continuei a minha busca incansável e o segundo embrulho foi retirado, com uma rapidez nunca antes vista na história desse País, e aqueles que me conhecessem sabem ser quase impossível eu agir de maneira ligeira. Um recorde, típico dos grandes feitos terrestres.

Um plástico escuro encobria a minha visão, separava-me do presente, deixava obscuro o objeto desejado. Foi aí que não agüentei mais, tratei logo de dar um fim aquela cena enrolada, rasguei o plástico e acabei com a coleção de papéis de presentes que minha esposa fazia. Sei que ela não iria perdoar-me, pois sempre os guarda para uma eventual entrega aos parentes ou amigos.

Lá estava ele, meu livro ganhou vida, restaurado, suas páginas caídas deram lugar a novas páginas, velhas a cheirar, mas juntas, sem destaque. Conservava o caráter da primeira edição, mesmo não sendo uma obra tão velha. Beijei-o, tateei, tive vontade de começar a relê-lo, já que se apresentava como novo. Alguma coisa parecia ter mudado, não sei o que era. Achei-o diferente daquele que um dia me foi dado. O bom filho a sua casa retornara. Era o conhecimento encontrando-se com seu filho, uma relação de discípulo e mestre. Eu discípulo, filho, amante desta obra que um dia Fernando Pessoa cantou e eu resolvi comprá-lo por ser indicada pelo escritor moçambicano Mia Couto.

Parece que o ladrão acabou notando o amor que tinha pelos meus livros, tratou de lê-lo e devolveu como fazem muitos leitores que se utilizam de livros públicos para enriquecerem o seu conhecimento.

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