quinta-feira, 9 de outubro de 2008

A Anunciação

Que atitudes possuíam aquele homem, dignas de um porco. Mas ele julgava-se ser um animal racional, e como todos, agir de maneira reflexiva e certeira. Imagino os abusos a que não foram cometidos com sua esposa ao longo de suas vidas, conjugados. Como pode uma mulher submeter-se aos caprichos e atitudes animalescas de um homem? Até quando mulheres sofrerão caladas as execuções de seus valentes esposos? Onde se encontram as feministas? E as que queimaram sutiãs em praça pública? Por favor, libertem essa mulher das garras assassinas de um marido imundo, bêbedo e metido a valente! Sou eu um simples escritor que clama a presença das autoridades responsáveis por mais este caso, dentre muitos que acontecem.São cinco horas, badala o relógio arcaico fixo na parede confeccionada com tijolos de pouco pó. Maria levanta-se, pois é hora de preparar o café e sair para o pasto: retirando o leite dos tetos gelados dos poucos bovinos espalhados pela restrita terra que possuem, colhendo os ovos das magríssimas galinhas e aparar o mato que já encobrira algumas plantações. São coisas poucas, mas Maria não deixava de ter cuidados com esses bens que julgava deixar para seus rebentos. José, seu esposo, pouco contribuía. Trabalhava quando queria, pois sua mulher era usada para esse fim. Ficava em casa, procurando objetos para consertá-los e quase nada executava dentro de casa. Maria era quem laborava fora e dentro do lar. Seu marido não procurava melhorar as condições daquela casa velha, coberta por um plástico negro, paredes fracas, iluminação à base de velas. Banheiro não possuía, suas necessidades eram realizadas em fossa distante da casa, ao relento; a residência era precária, digna das condições mais miseráveis que vocês possam imaginar. Pensem, reflitam, pois Maria, também, procurava imaginar, distanciando-se da realidade que a incomodava. Utopizava dias melhores, longe do esposo, daquela terra infértil, do trabalho escravo; uma casa digna, uma comida mais nutritiva e a independência conjugal. Maria não sabia ler, mas tentava entender seus direitos, buscar novos horizontes e viver feliz para sempre como escutou quando criança em um casamento de parentes. Desejava ter filhos, constituir uma família feliz, mas o destino foi ingrato com a Senhora. Vítima treze vezes do aborto (poderia ser o Demônio que a atormentava), julgava-se improdutiva e a revolta de José seria essa: uma mulher que não era fértil, portanto os castigos constantes. José era rude, não conversava, seus atos eram mecânicos e instintivos. Como uma mulher poderia ter permanecido longos três anos nas mãos de um Diabo como esse? Ausente das leis que a Bíblia Sagrada pregava; ateu, não por ideologia, mas por desconhecimento total dos acontecimentos históricos. Era um selvagem. Um ignorante. E todas as noites antes de dormir, Maria rezava a Deus pedindo graças de ter um filho, um companheiro que lhe desse força para desgarrar-se dos abusos de José. E fico aqui refletindo: como pode um pai e uma mãe dar um nome Santo a um Demônio estampado na derme daquele sujeito? O destino pode até existir, mas ele é falho e nós, também, não somos os perfeitos que se espalham por aí.Bateram sete horas da noite. Maria recolhera os pratos plásticos do jantar e levou-os até o tanque para serem lavados, pois na cozinha a pia nunca existiu. Ineficiência de José, pois Maria destinava-se ao tanque em noites frias ou quentes, escuras ou iluminadas pela Lua. Ele não a acompanhava. Maria era apenas mulher para satisfazer seus desejos sexuais. Acredito, agora, que a incapacidade de gerar um filho era dele, um animal, dotado de nenhum carinho.Os pratos eram lavados, enquanto José, na sala, lambia os restos de uma lata de creme de leite. Dias antes, Maria havia sonhado com o Anjo que vinha lhe anunciar o nascimento de seu Filho tão desejado. Um misto de fantasia e realidade. Verdade e mentira. Era ficção, mas Maria jurava, em reflexão, ser verdade. Uma cena saída da Bíblia e desembarcada nos nossos dias. E era essa fé que dava forças a Mulher de José, já que essas histórias que estavam em livros, filmes, novelas, nada disso faziam parte do cotidiano do marido de Maria. Às vezes me pergunto o que é Fé? A Ciência, ainda, não conseguiu explicar. E acreditar em Deus? Que Deus? Este que ao longo dos séculos deixou Maria sofrer e José impune? Não sei. Tudo isso é muito confuso.Maria lavando, José lambendo. Foi quando um Senhor de barbas por fazer, cabelos compridos, roupas sujas e rasgadas aproximou-se e disse: - Desejo apenas um prato de comida. Não fique com medo, pois o perigo encontra-se internamente e não aqui do lado de fora. Maria um pouco nervosa pela abordagem, refletiu e respondeu: - Aguarde um instante que vou até lá dentro buscar um resto de comida que sobrou da janta. Enquanto Maria mexia com as panelas, preparando o prato para o Senhor, que estava do lado de fora, José, ainda, lambia a lata.Maria saiu, não mais viu o homem de barbas longas e cerradas. Procurou pelo escuro a par de uma vela aquele Senhor, chamou com sua voz fraca até adentrar ao curral. Lá estava o Velho que a esperava para aquele momento. Não sei se era estupro, pois a esposa de José parece ter gostado da atitude do Senhor. Estou confuso e ela também. Denunciar à polícia ou contar ao esposo? Mas se aquilo ficasse caracterizado como estupro, o que relatar das atitudes noturnas de José? Ainda afetada pelo gesto, que não sabia ser sonho ou realidade, Maria entrou na casa, tratou de tomar banho. José nada falava, roncava feito um porco no sofá.Ao longo de três meses Maria carregou a omissão da verdade consigo, mas não agüentava mais. Chegou até José e disse: - Marido, estou esperando um filho! Sentado, retirando um bicho-de-pé, José respondeu: - E daí, você nunca consegue segurar por mais de três meses!Aquelas palavras incomodavam Maria, que poderia ter dito a verdade. “O filho não é seu, a infertilidade era sua, Marido, Demônio”. Maria nada lhe disse, teve o filho, mas mesmo assim José continuou com suas atitudes animalescas. A Senhora acreditava ter sido concebida pelas graças do Anjo (Senhor) Salvador, um misto de sonho e realidade. E que um dia Seu Filho Santo lhe salvaria, libertando-a das garras de seu eterno Demônio, José.
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