sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

A morte da sorte

Foi ao supermercado o qual fazia compras a cada quinze dias. Homem solteiro de seus 45 anos comia pouco, mas bebia bastante. Talvez pela solidão. A bebida seu interlocutor.


Com os mantimentos comprados e pagos era hora de pegar os cupons que o valor gasto lhe dava direito e preenchê-los. Usou da caneta com calma, pois tinha pouca intimidade com a representante dos rabiscos. Pediu ajuda para caixa que não se isentou em ajudá-lo. Estava tudo certo, agora era depositar os cupons na urna e torcer para ser o vitorioso. Um carro era o prêmio. Todo ano era a mesma coisa. O mesmo ritual era cumprido e nunca ganhara nada. Mas passava o tempo, alimentava a esperança e estimulava-o ao sonho.

No último dia 26 de dezembro o senhor de sobrenome Silva, da rua Tal, sem número veio a falecer. Foi encontrado morto em sua casa pela vizinha que todas as manhãs levava-lhe roscas frescas para o café. Família não mencionava. Filhos, irmãos, pais, nada desse parentesco fora divulgado aos vizinhos. O sobrenome era popular, ao certo alguém se manifestaria. Mas o homem não tinha bens. A casa era alugada e ao que consta devia cinco meses de aluguel. A energia deixara de ser fornecida há alguns meses devido à falta de pagamento. Água não era potável. O consumo era retirado da torneira. Aquela água que escorre pelos canos, mas ele afirmava e se contentava em dizer que era limpa. Poderia ser ingerida.

Dentro de casa apenas a cama, um fogão com duas bocas e uma geladeira velha, que mais contaminava o meio ambiente com sua emissão de CO2 do que lhe proporcionava benefícios. Alimentos podres eram guardados no refrigerador. As teias de aranha se enrolavam pela cama, assim como as traças que consumiam uma centena de livros de literatura encostados na parede umedecida. No caderno ao lado de uma mesa posta ao lado da cama dormia um lápis e uma caderneta com algumas anotações. Eram os números da sorte que ele insistia em preenchê-los para a próxima loteria.

O velório contou com alguns vizinhos. Parentes não apareceram. Sinal de que não os tinha. Também não deixara nada de herança e parentes aparecem nesses momentos, na partilha dos bens. Uma coroa de flores enfeitava a sala onde o corpo se encontrava e fora doada pelo prefeito da cidade, órfão de um de seus eleitores.

Quando o corpo dirigiu-se para o enterro a chuva caiu abundantemente. Não sobrou ninguém para descer o corpo na cova. A terra vermelha o esperava. Nem mesmo o coveiro fez jus a sua profissão. Ao final da chuva o barro vermelho resultado da terra misturada com a água da chuva dava novas cores ao caixão que ficou no chão. O coveiro realizou o ato solitário e nem mesmo jogou uma flor.

O senhor de sobrenome Silva foi enterrado e esquecido, mas ontem, dia 31 de dezembro veio a notícia que ele fora o ganhador do carro, cujos cupons preencheu em uma das compras no supermercado acostumado a recebê-lo para os gastos quinzenais.

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