sábado, 2 de julho de 2011

Uma viagem mortal

Quando passei por aquela esquina notei um corpo estendido na quente calçada que separava pedestres e veículos.

Era uma mulher de aproximadamente quarenta anos, maquiada ainda, mas envelhecida pela vida acostumada aos anos difíceis enfrentados. Dor voraz, consumidora do meu peito, feita para estreitar minhas emoções levando a minimização dos sentimentos.

Talvez tenha falecido feliz, pois demonstrava um sorriso nunca visualizado antes, segundo seus amigos, companheiros das ruas, sentidos com o seu passar. Usou crack, consumiu muita maconha, participou da “Marcha da Maconha” um dia antes de embarcar nesta marcha rumo ao caminho com Deus. Cocaína, álcool foram abusivamente consumidos. Não se esqueceu de experimentar o “Daime”, porém pouco freqüentou esta seita. Conheceu alguns companheiros que fizeram com que ela seguisse este caminho. Digo e provo que foram os seus amigos que a levaram para o “buraco”, mesmo sem acreditar na máxima de Rousseau: “o ser humano nasce bom, mas a sociedade o corrompe”. Ela começou a beber, embriagava-se incansavelmente, aos finais de semana no começo e depois todos os dias esvaziava o seu fígado de reservas disponível para promover o combate a bebida, porém o vômito ou mesmo as fortes dores de cabeça noutro dia não foram suficientes para alertá-la da tamanha despedida que escolhera para o seu final.

Alguns diziam que fugira de casa depois de uma discussão seriíssima com o seu esposo. Partiu sem destino, saiu do interior e desembarcou na Capital, sobreviveu sem drogas ao começo de sua vida, mas não agüentou, teve que se afundar nesse mar de retornos, consumidor constante das famílias de bem. Sem emprego três meses depois, viu-se desesperada, sem chão. Bebia ao longo dos três períodos diários pelos quais passamos. Descobri que nada do que foi relatado aqui, mais precisamente algumas linhas acima das quais já atravessamos, não tiveram validade. Eram simples, mas exigiam um poder psicológico enorme. Ela perdeu o marido para outra mulher depois de 30 anos casados. Eles foram pegos numa das camas do lar desta viciada. Ela acabou com a garota, deixou-a com alguns trapos. Jurou vingança, a agredida. Ela a esperava todos dias para um novo confronto, de puxões de cabelos à discussões virtuais. Estas todos participando, dando os “pitacos”, mas não solucionando o que era para acabar sem mortos e nem feridos.

Um lenço branco caiu sobre o corpo morto, minutos depois, uma roda de pessoas curiosas se avolumava sobre a falecida, polícia não se notava, a noite foi chegando e ela ali, convivendo com o descaso mesmo depois da sua morte, não seria velada num lugar apropriado. Velas a rodeavam e iluminavam a falta de luz naquele lugar central. Alguns rezavam, outros pregavam por ali com uma bíblia em punho, davam o seu show sim. Outros comiam o seu lanche observando à morta, parece que nunca viram um morto. Senhoras espalharam o boato de que ela era prostituta. Tamanha fofoca chegou à escola de um de seus filhos, o garoto foi ridicularizado. Vaiado, sofreu “bullying”. Naquela noite ninguém dormiu, apenas ela que fechava os olhos como os de um bebê. Sem pestanejar. Dias difíceis, vida ingrata.

A família vive uma vida de amargura, anseiam que um dia a filha apareça naquela porta ali, donde escrevo esta crônica.

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